musica, linguagem superior

"A música é a manifestação universal e perfeita da linguagem. Seu significado pode traduzir o que as palavras não alcançam, e por essa razão, muitas vezes é utilizada para expressar o intangível. Sua associação ao sagrado remonta aos primeiros tempos da humanidade; desde sempre atuando como um registro da história, ligada a evolução do homem e seu pensamento.

Para compreender sua importância, vamos separá-la em duas categorias: a música modal, que engloba todas as tradições orientais (chinesa, japonesa, indiana, árabe, balinesa, entre outras), ocidentais (a música grega antiga, o canto gregoriano e a música folclórica dos povos europeus), e também a música de todos os povos e nações da África, América (índigenas) e Oceania (aborigines australianos). Por outro lado, a música tonal, que engloba toda a música ocidental conhecida, da alta Idade Média aos tempos atuais, compreendendo a música dos grandes compositores eruditos e populares.

Uma das grandes diferenças da música modal para a música tonal, é que a primeira nasce e se perpetua através de fontes anônimas, por isso, possui caráter coletivo e tem função definida (como para um ritual, promovendo a integração do ouvinte em vários níveis). Já a segunda, cultua o indíviduo, expressando sua personalidade, estilo e estética, usualmente exigindo uma participação não-ativa do ouvinte (por exemplo, o ato de assistir a um concerto de música clássica, onde todos devem permanecer em silêncio até o final).

A música modal está investida de um poder, seja ele mágico, terapêutico ou mesmo destrutivo, e por isso sua prática seja cercada de cuidados rituais. Em sua maioria, os instrumentos utilizados são primitivos e trazem em sua origem, os testemunhos da vida e da morte: os tambores são feitos de pele de animal, as flautas de osso, as cordas de intestinos, as cornetas de chifres. Uma alusão ao que é perecível (o corpo), que anseia o reencontro com o eterno (a alma). De uma certa forma, a música sublima o sacríficio, dando ao homem uma chance para se aproximar de Deus.

Nas mais diversas culturas, nos mitos de criação do universo, Deus se apresenta através do som: “No princípio era o Verbo”, no antigo testamento – ou seja a própria emanação da Vontade Divina que se manifesta por intermédio do som; Um jacaré batendo na barriga, com a própria cauda – como um tambor – num mito egipcio ou mesmo em várias nações índigenas brasileiras: os Carajás, os Ticuna, os Saterê-Maué, etc… Na cultura Guarani, acredita-se que a música seja o passaporte para o encontro com os espíritos que habitam as coisas que existem. Com o som produzido pela batida dos pés no chão e com o som da voz, recria-se o mundo ou imita-se a batida original da criação do mundo. Muitas vezes, a música vem através dos sonhos, como no caso dos Munduruku e dos Xavante. Depois que a música é sonhada, o sonhador apresenta a comunidade, que irá aprová-la ou não; Caso a aprove, a música passa a ser cantada por toda comunidade. Depois de algum tempo, ninguém mais lembra quem foi o autor, a música passa a ter vida própria. Por acreditar que os espíritos “falam” através dos cantadores, as pessoas são envolvidas pelos ritmos e melodias repetidas, e em extâse, entram em outro universo, em uma outra visão do mundo, em outra consciência de realidade. Quando uma música é transmitida pelo sonho, ela é própria voz da Criação, que ensina algo ao sonhador, que este precisa aprender e transmitir. Trata-se de uma experiência mística de percepção do sagrado, quanto mais sintonizado estiver o “receptor”, tanto mais estará apto a perceber vibrações mais sutis de sabedoria e conhecimento.

Nesse mesmo contexto, no hinduísmo – que é uma religião intrinsicamente musical, baseada no poder da voz e na importância da respiração - a música se apresenta como um espelho de ressonância cósmica, que compreende todo o universo. O canto dos homens nutre os deuses que cantam e dão vida ao mundo… Esse processo é como a serpente Ouroboros, que morde a própria cauda, está em constante expansão e sua manifestação é onipresente e onisciente. Minha afilhada Julia, de 9 anos de idade, disse outro dia a sua Mãe: “ O universo é infinito, porque Deus ainda o está criando”… Os hindus acreditam que as formas de som audíveis, criadas pelo homem, exercem efeitos muito poderosos sobre a consciência, o espírito e as coisas materias.

A música ajuda o ouvinte hindu a dirigir suas emoções ao Amor Supremo, a silenciar suas inquietações e levá-lo a um ponto de concentração que eleva sua frequência vibratória corporal; É uma “ferramenta” que canaliza o processo de transformação de sua parte material para o espiritual. Segundo os Upanishades (antigos manuscritos indianos), a vocalização da sílaba OM, representa o conceito integral do Som Cósmico e por isso “afina” o próprio individuo com a Essência Celestial. O poder vibratorio do OM, quando corretamente emanado, molda e organiza toda a matéria, pois provoca a coesão dos átomos, originando a energia da vida. Para não correrem o risco da música ser mal empregada por individuos pouco evoluídos ou de baixa moral, os professores indianos de música submetem seus estudantes a muitos anos de estudo e aprendizado, ensinando-os a tocar pelo menos 7 instrumentos diferentes.

Consideram também, que os aspirantes a músicos demonstrem uma sólida consciência espiritual e responsabilidade, pois um dia se tornarão professores ou gurus de outros estudantes. De uma maneira ainda mais profunda, a música ritual tibetana não se atém as emoções da individualidade temporal, mas com as qualidades eternas da vida espiritual.

Para os tibetanos, a entoação dos mantras sagrados, constitui-se em oração em seu aspecto meditativo e transformador. Tive a rara oportunidade de fazer dois shows e gravar um CD com os Lamas Tibetanos do mosteiro de Gaden Sharste, e posso afirmar que o efeito provocado pela música que tocamos juntos foi muito além de qualquer compreensão racional. As melodias não foram “pensadas” ou tocadas para soarem de uma maneira bela e ordenada, (como nós ocidentais, esteticamente buscamos…) elas simplesmente surgiram, fruto de um conhecimento maior e da expressão natural de uma tradição de milênios. Procurei então apenas me “encaixar”, cuidando apenas que minha percepção “ocidental” não atrapalhasse… Fluindo com os mantras, pude encontrar uma maneira totalmente diferente de expressar a musicalidade que ali emanava, conseguindo através de instrumentos “tradicionais” como o piano e os sintetizadores eletrônicos, uma integração profunda. Sem a regência do aspecto racional, toda a música foi criada no canal da intuição, quem ali tocava não eram mais os indíviduos, mas era o Espírito. O resultado desse encontro sonoro de diferentes culturas, foi sublime, pois dentro da Perfeição de nossas Essências Espirituais, encontramos a mesma expressão e compreensão. Não foi uma experiência de tocar juntos, mas sim de orar juntos…

Desde Platão (427-327 a.c.) até a Idade Média, era natural relacionar a música com a astronomia e com a matemática, olhando-se para a escala de sete sons como um problema cósmico, ou para a astronomia como uma teoria da música celeste. Mas atribui-se a Pitágoras (572-497 a.c.), a descoberta da base aritmética dos intervalos musicais, ou seja, a relação entre a frequência das vibrações e a altura dos sons. Aplicando esse conhecimento ao movimentos dos astros e relacionando as distâncias entre as esferas celestes com os intervalos musicais, os gregos atribuíam notas musicais aos astros. Séculos mais tarde, o astronomo alemão Kepler (1571-1630), escreveu as três leis gerais que descrevem o movimento dos planetas e com elas, pode aplicar as novas conclusões a teoria musical das esferas. Kepler concluiu que os planetas mais longínquos eram mais lentos em suas órbitas e portanto produziam sons mais graves. A medida que a distáncia ao Sol diminuia, o som se tornava mais agudo. Por exemplo, deduziu que Saturno, percorre um arco de 135 segundos por dia qunado está mais perto do Sol (periélio) e um arco de 106 segundos por dia quando está mais afastado do Sol (afélio). A razão 135/106 está muito próxima de 5/4, que é a mesma razão entre as frequencies associadas ao intervalo de terça maior em música (por exemplo dó-mi). Usando esse método para todos os planetas, ele descobriu que as razões periélio-afélio relacionadas com os planetas são semelhantes as razões associadas aos intervalos musicais consonantes. Era uma confirmação do pensamento pitagórico (mas também de Platão, Plinio, Cícero e Ptolomeu) de que a música das esferas era muito mais que uma bela alegoria filosófica e que tinha um fundamento cientifico, que iria transformar o pensamento do homem.

Tal como os antigos gregos, os chineses acreditavam que o objetivo da música não era o lazer e o entretenimento, mas a transmissão das verdades eternas e a influência no caráter dos homens, para torná-los melhores. Na antiga China, a tradição e a importância da música é tão antiga que se perde na noite dos tempos; Os conhecimentos dos antigos músicos chineses eram utilizados para manipular os padrões melódicos, os ritmos e a combinação dos instrumentos, dessa forma “anteviam” os efeitos que a música produziria nos ouvintes. Confúncio dizia que “ A música do homem de espírito nobre é suave e delicada, conservando um estado de alma uniforme, animador e comovente. Um homem assim não abriga o sofrimento nem o luto no coração; os movimentos violentos e temerarious lhe são estranhos”. O efeito moral da música para os chineses era tão importante que acreditavam que, para saber se um reino é bem ou mal governado, se sua moral é boa ou má, bastaria examinar a qualidade da música que se ouvia, pois ela forneceria a resposta. O Tom Fundamental era o huang chung, que significava literalmente “sino amarelo”, a referência da altura padrão em que se baseava a música de toda a nação. Esotericamente falando, esse som representava a manifestação audível do Som Cósmico Primordial (Logos). Por isso, considerava-se que os imperadores podiam se incorporar a vibração do Logos, sendo mais morais, sábios e justos. As cortes imperiais costumavam manter enormes orquestras, com mais de 1.000 músicos, que nos atos solenes e festividades, demonstravam o poder e a energia do reinado. Acreditavam que quanto mais intenso o volume, maior seria a quantidade de Energia Cósmica gerada. Com o passar dos séculos, as últimas dinastias imperiais foram relevando a música em planos menos importantes, permitindo a miscigenação com outras culturas, que culminaram com a praticamente abolição dos valores espirituais no ínicio do século 20.

A grande pergunta que envolve o homem acerca de sua origem e o sentido de sua vida, está presente em todas as religiões e doutrinas. Todas elas encerram no mistério místico de suas essências a resposta procurada. Mas, se por um lado, nenhuma linguagem produzida pelo intelecto humano ainda conseguiu desvelar totalmente esse segredo, Deus presenteou o homem com uma linguagem superior, metafísica, a música. É por ela e com ela que a criação pode vislumbrar o Criador e mesmo que pelo curto tempo de uma canção ou melodia, penetrar no infinito mistério da vida. "

Corciolli,
Azul Music
fonte: estilo azul